Serão entre oito e dez mil. O número é uma estimativa já que ninguém sabe exatamente quantos emigrantes portugueses e lusodescendentes chegaram à Madeira nos últimos quatro anos vindos da Venezuela.
Mais certa é a quase total ausência de discriminação na nova terra. “Há relatos pontuais de bullying nas escolas e queixas contra patrões que se aproveitaram da fragilidade dos empregados, mas não podemos falar de xenofobia. Os venezuelanos não são estranhos, existe uma comunidade há anos a viver na Madeira, há laços familiares. Estes são os netos e os bisnetos de madeirenses. É natural existir uma certa resistência quando se ouve falar em espanhol na rua, nos cafés, quando há arepas[pão de milho] à venda em todo o lado. Mas, como digo, são casos pontuais”, explica William Figueira, psicólogo e responsável pelo único estudo à forma como a comunidade luso-venezuelana foi acolhida no arquipélago.
Quem chega também se sente confuso. “Na Venezuela éramos os ‘portus’, aqui somos os ‘miras’. Eu, por exemplo, era conhecido como o professor português que dava aulas na universidade, aqui sou o psicólogo venezuelano. Do ponto de vista da identidade fica-se sem saber a que cultura ou lugar se pertence”, acrescenta. Para William, porém, esta confusão é uma oportunidade, uma prova de resiliência, sendo certo que, se houver apoios, a integração corre melhor. Mas na Madeira as ajudas não ganharam a forma de planos específicos.
A administração pública regional optou por encaminhar os migrantes, que são cidadãos portugueses, para as ajudas sociais disponíveis. Os dados mostram que mais de seis mil estão inscritos no serviço regional de saúde e mil no Instituto de Emprego da Madeira. As contas do governo regional também indicam que, nos últimos anos, mais três mil luso-venezuelanos conseguiram encontrar trabalho. A maioria está nos restaurantes, cafés, hotéis e lojas. Uma parte menor conseguiu equivalência dos cursos e está a trabalhar nas áreas de formação.
A entrada de mais 1400 alunos nos estabelecimentos de ensino da Madeira ajudou a compensar a quebra de alunos e permitiu manter abertas escolas e garantir trabalho aos profes- sores. Para colmatar a dificuldade que muitos têm em falar a língua do país de acolhimento, há aulas de português nas escolas, paróquias e universidade.
MAQUILHAGEM E BOLINHOS DE CANELA
Mas o grande problema de integração não foi a língua, nem sequer o acréscimo nos custos da saúde — foi encontrar casa onde viver. O Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana e o Governo financiaram a construção de62 andares, dos quais 28 foram entregues em dezembro de 2018. Foi a única medida específica tomada em relação à comunidade, mas há ainda 600 famílias à espera de uma casa ou de apoio para reabilitar imóveis de família.
Na Ponta do Sol, o movimento no supermercado está fraco e no café são poucos os clientes, mas Edgila Sousa faz a festa e o gasto com exuberância venezuelana. Insiste em acompanhara conversa com bolinhos de canela e folhados de queijo branco, lembranças de Caracas, a cidade que deixou em 2015 e para onde não pensa voltar.
Filha de comerciantes, mãe venezuelana e pai sírio, formou-se em Direito e na Venezuela apaixonou-se pelo vizinho português, engenheiro de telecomunicações e gerente do restaurante da família. “Nunca pensei emigrar”, sublinha antes de contar a história que a trouxe até ali.
Tudo começou com o medo, com a sensação de que era uma questão de tempo até algo muito mau acontecer. “Estava a ficar paranoica.” Todos os dias mudava o percurso que fazia até casa, evitava ter uma rotina. Uns meses antes de casar foi assaltada e, na noite do casamento, os avós foram sequestrados e roubados. O sogro, que tinha planos para investir na Madeira, apressou o processo e entregou-lhes a gestão do supermercado.
José António, o marido, tinha a experiência do restaurante mas não conhecia os hábitos portugueses. Sabia gerir stocks mas somente num país com inflação galopante. Ali, na Madeira, não se compra a 20 e se vende a 40, nem faz sentido ter stock.
Edgila, que não conhecia uma palavra de português, fez um curso intensivo na Universidade da Madeira e lá conheceu outras duas advogadas na mesma situação. Na Venezuela, conheciam-se de vista, na ilha fizeram-se amigas. “Eu é que não aprendi grande coisa de português”, diz com uma risada, enquanto explica que, pelo caminho, percebeu que andava muito maquilhada. “Sou venezuelana e filha de árabes”, explica.
Quando em 2016 soube que estava grávida ficou feliz, mas também triste. “Não tinha comigo a família, alguém que me desse um abraço. ” Mas foi por pouco tempo. Mãe e irmã acabaram por se juntar a ela.
Edgila pensa muito no futuro do filho Eduardo. “Os meus pais fizeram questão que eu tirasse Direito, mas agora não me serve de nada. Eu vou educar o meu filho de maneira diferente, vou dizer-lhe para descobrir algo de que goste, mas que seja útil em qualquer parte do mundo.
O «MIRA» HUMORISTA
Em 2017, Johnny Corte de Sousa deixo una Venezuela um talho, uma firma de distribuição alimentar e um lugar de destaque numa câmara de comércio, além de tudo o que faz alguém pertencera um país, mas não se arrepende da decisão. Tomou-a pelos filhos. “Para eles a história começa na Madeira. O meu filho fez agora cinco anos, cantámos os parabéns em português e em espanhol. Ele só cantou em português. ”.
Mesmo com uma casa para morar, foi preciso fazer-se à vida, e Johnny lembra a má experiência do primeiro emprego. “Era daqueles patrões que queriam enganar. Trabalhei lá um mês e levei cinco para ter o ordenado .”Depois foi tentar a sorte na hotelaria. “Perguntaram-me se tinha experiência e eu disse que sim, que tinha ficado hospedado em vários hotéis e comido em muitos restaurantes.
O humor de Johnny alimenta-lhe o hobbie como comediante. No Instagram publica vídeos com o seu “Manuel”, emigrante venezuelano de boné, barriga saliente, a falar uma mistura de castelhano e sotaque madeirense, paródia aos ‘miras’ como são conhecidos na região. “Eu não levo a mal quando me tratam assim, eu sou mesmo mira sou uma arepa e tenho orgulho nisso”.
MADEIRA, «A MINHA CASA»
O “Manuel”, porém, não paga as contas— para isso há o trabalho como empregado de mesa no hotel Savoy Palace. “Não é o meu emprego de sonho, mas temos de começar por algum lado. Eu gosto muito do meu lado português, mas há uma coisa que é veneno, que mata tudo: é quando me encolhem os ombros e dizem ‘é assim’, ‘é a vida’. Uma pessoa não pode encarar a vida assim, tem de ter esperança.
Johnny promete dar luta. É um dos membros ativos do núcleo de emigrantes do PSD-Madeira. “Sei que as pessoas pensam que, aqui, num país europeu, é impossível um regime como o de Maduro, mas lembro-me do que disseram muitos venezuelanos quando se falou que Chávez iria transformar o país numa espécie de Cuba. Disseram que era impossível, o país era rico, tinha recursos e uma democracia implantada.
Rosa Castro é jurista, tem um filho de oito meses e nem pestaneja ao dizer que nunca se sentiu em casa como na Madeira. É o lugar aonde gosto de voltar, onde o meu filho vai crescer. Porém, a vida ainda não está como quer, sobretudo a situação laboral do marido. “Era gerente de uma loja na Venezuela e aqui está na restauração. É por onde começam quase todos os que fogem do país de Maduro.
Ainda assim, não perde a esperança, pois em cinco anos muito melhorou. Rosa conseguiu a equivalência do curso de Direito, empenhou-se no estágio e passou o exame da Ordem. “Foi difícil por causa da língua e porque redigir uma peça processual em Portugal é muito diferente.” Depois de um estágio na Segurança Social, abriu uma vaga no Instituto das Florestas e Conservação da Natureza e ela ficou. De caminho chegou uma gravidez e um filho, agora com oito meses. Rosa lembra-se de que eram o casal mais novo das aulas de preparação para o parto. As venezuelanas têm filhos mais cedo e poucas têm apenas uma criança.
“Um dia pode ser que volte ao lugar onde nasci e cresci e que gostava demostrar ao meu filho, tal como o meu pai fez comigo. Ele trouxe-me à Madeira. Não tenho dúvidas de que aqui é a minha casa.
Elisabete Benedito nasceu na Boaventura, norte da Madeira, em 1982,mas fez-se gente na Venezuela para onde a família emigrou. Lá viu morrer o pai, tinha ela 11 anos. A mãe garantiu um curso de Direito às filhas e regressou à Madeira para viver a reforma. Elisabete nunca pensou que esse seria o seu destino, mas em 2017, quando faltava comida, água, eletricidade e a violência atingia níveis nunca vistos, vendeu o que podia — o marido ficou a tratar do resto — e partiu também.
O dinheiro que trouxe “deu para comprar um carrinho muito velho” e foi assim que encontrou emprego num pequeno hotel. Ainda hoje guarda a amabilidade dos patrões e dos colegas, mas como na Venezuela o Ministério da Educação perdeu os seus certificados de habilitações teve de procurar trabalho noutro sítio.
Foi para um restaurante onde, além de servir às mesas, também fazia limpezas, incluindo as casas de banho. “É horrível, não se faz ideia”, explica agora que passaram dois anos e está sentada à secretária da imobiliária onde trabalha. O marido, que chegou, entretanto, está no mesmo ramo. A irmã acabou o curso de Direito, casou e partiu também.
Chegaram a viver todos juntos, mas entretanto Elisabete e o marido já conseguiram arrendar um apartamento, compraram um carro menos velho e estão ambos no ramo imobiliário. “Não é fácil sem conhecer bem aterra. Eu nem sabia a diferença entre um beco, uma travessa e um caminho. Recorro muito ao Google.” Apesar de estar melhor, não se sente em casa. Ainda não fez amizades, tem apenas uns conhecidos. “O que sei é que não volto. A Venezuela está culturalmente danificada. Uma parte da população vive à espera que o Governo resolva, e quem tem dinheiro recorre a esquemas. Penso muitas vezes se não será melhor tentar a sorte noutro sítio, onde existam mais oportunidades. Talvez Lisboa”.
In «Expresso»