Autarquia e empresas da região procuram fixar lusodescendentes para aumentar população e responder à falta de mão-de-obra no setor agrícola.
Técnicos da Câmara de Ferreira do Alentejo estão a percorrer todas as ruas do concelho para procederem ao levantamento de casas abandonadas e desocupadas. A autarquia quer colocar os imóveis no mercado de arrendamento ou venda para, assim, convencer famílias portuguesas regressadas da Venezuela a instalarem-se no concelho, com a possibilidade de serem recrutadas para trabalharem nas empresas da região.
Serão centenas - de acordo com estimativa do presidente, Luís Pita Ameixa - as casas envolvidas neste projeto, que começou a ganhar forma com a chegada dos primeiros 40 luso-venezuelanos à Herdade do Vale da Rosa. Trabalhadores que o proprietário da "casa", António Silvestre Ferreira, foi buscar à Madeira. Mas é preciso mais mão-de-obra num concelho que perdeu metade da população nos últimos 50 anos. Tem hoje pouco mais de oito mil habitantes.
Para já, Jorge de Abreu e as irmãs Sandra e Maria Gouveia são três dos luso-venezuelanos que encontraram nos 250 hectares de vinha do Vale da Rosa um trabalho que lhes garante um salário e uma vida tranquila após fugirem da violência e "da falta de tudo", como diz Jorge, que tornou insustentável a permanência na Venezuela. Vivem em contentores instalados herdade, mas sonham mais alto. Querem os seus perto de si.
Sandra, de 38 anos, era supervisora de uma padaria, enquanto Maria, de 29, era assistente de emissão numa rádio. Em abril de 2018 despediram-se da Venezuela e regressaram à Madeira. Aterraram no Funchal de coração nas mãos por terem deixado os pais e os irmãos para trás. "Já não suportávamos que os venezuelanos nos olhassem de lado, ameaçando todos aqueles que tinham sangue estrangeiro", recorda Sandra, lamentando que "nem se podia andar com um telemóvel na rua, porque era-se assaltado. Não havia medicamentos, nem comida, nem dinheiro", relata ainda com emoções à flor pele.
Mesmo em Portugal só viria a dormir mais tranquila em dezembro, a partir do momento em que o resto da família aterrou na Madeira, embora se lhe embargue a voz quando recorda tudo o que perderam. Hoje sente falta do papagaio, dos cães e dos gatos. "Os que não falavam ficaram lá. Por isso ainda não estamos cá todos", lamenta, enquanto Maria agradece a oportunidade que foi dada em Vale da Rosa.
"Isto aqui é muito frio, mas ter um salário, comer e dormir bem, ter medicamentos e poder ajudar os meus pais é muito bom", congratula-se Maria, que quer voltar ao jornalismo mal consiga recuperar a sua documentação.
Se as irmãs foram recrutadas na Madeira, onde o emprego lhe faltava, Jorge de Abreu preferiu aterrar logo em Lisboa para seguir viagem rumo a Alfundão, a freguesia de Ferreira do Alentejo onde se erguem as vinhas do Vale da Rosa, o maior empregador da região, que garante uma média de 800 postos de trabalho.
Em outubro de 2018, o assistente veterinário, com 32 anos, chegou ao Baixo Alentejo, depois de dias difíceis e, sobretudo, violentos em plena Venezuela, onde chegou a ser sequestrado. "Roubaram-me tudo e tive de pagar uma fortuna que reaver os meus bens", revela, lamentando que a mãe tenha sido operada sem ter acesso a medicamentos. "Hoje estou a mandá-los para lá e peço a Deus que ninguém da família adoeça", diz, fazendo fé de que em dois meses vai conseguir trazer os filhos, a mulher e os irmãos para junto de si.
De braços abertos
Alguns deles poderão mesmo vir a ser os próximos trabalhadores do Vale da Rosa, onde se produz à ordem de seis mil toneladas de uva de mesa gourmet entre 250 hectares de terra, embora no horizonte esteja o investimento na duplicação da vinha, o que abre portas a mais luso-venezuelanos que queiram trabalhar por estas paragens.
Também por isso o proprietário, António Silvestre Ferreira, está de braços abertos. "Estamos sempre a precisar de pessoas, porque aqui não há mão-de-obra. Temos 600 pessoas numa vinha antes da colheita - mais de 200 são estrangeiros - porque é garantia de um trabalho que assegura a qualidade que queremos imprimir às nossas uvas, onde os cachos vão sendo trabalhados na própria vinha", justifica.
Aliás, foi o próprio empresário que decidiu ir, por conta e risco, à Madeira tentar convencer luso-venezuelanos a trabalhar na sua herdade, onde a sazonalidade marca as épocas do ano, em que o número de trabalhadores chega ao milhar em tempo de colheita.
A primeira incursão pelo Funchal, que contou com o apoio do governo madeirense, foi infrutífera, mas aos poucos os lusodescendentes lá se deixaram seduzir pela oferta alentejana. António Silvestre elogia o seu trabalho e já admite vir a contratar perto de mais cem luso-venezuelanos para que fiquem a tempo inteiro na herdade, assegurando especializações em várias áreas.
"São pessoas que têm vontade de trabalhar e que aprendem depressa este ofício. Depois há a vantagem de a língua ser muito próxima do português", diz o empresário, enquanto na freguesia do Alfundão, onde estão alojados, os comerciantes admitem já ter sentido a sua chegada, com o aumento do consumo. A principal mercearia alargou mesmo o horário de funcionamento.
A autarquia encontra aqui uma oportunidade sublime para repovoar o concelho, estando em curso um levantamento das casas devolutas, rua a rua. Revela o presidente da câmara que o objetivo é chegar à fala com todos os proprietários para tentar colocar as casas no mercado de arrendamento e de venda, destinadas aos trabalhadores que se pretendam instalar-se no concelho.
"Estamos a tentar criar um fundo financeiro que permita reabilitar as casas degradadas, em conjunto com as empresas que estão interessadas nestes trabalhadores e com outras entidades, como o próprio governo", explica Luís Pita Ameixa, revelando que se está a tentar uma fórmula jurídica para obviar este processo.
A ideia é ainda criar uma espécie de "bolsa de trabalhadores" habilitados a responder à procura do mercado ao longo do ano, após serem formados em vários ramos de atividade agrícola. "As pessoas poderão ter uma rotatividade, colhendo uvas num período, azeitona noutro e amêndoa e laranja noutro", exemplifica o edil, admitindo que esta solução vai segurar as famílias no concelho durante todo o ano.
Em termos sociais, Pita Ameixa sublinha que ambiciona receber as famílias luso-venezuelanas de "uma forma especial", justificando que a maioria chega a Ferreira do Alentejo por necessidades económicas, transportando relatos de "vidas desfeitas".
"Sabendo nós que há lusodescendentes que tencionam começar uma vida nova, queremos proporcionar-lhes aqui uma perspetiva de instalação", insiste o autarca, admitindo que a requalificação das casas e os futuros habitantes até iriam ajudar a recuperar as ruas do concelho, onde a degradação avança à medida que os anos passam sobre os imóveis devolutos.
Vivem em contentores com todas as condições
Os trabalhadores luso-venezuelanos, que passaram a ganhar a vida no Vale da Rosa, estão alojados, há mais de seis meses, em contentores na própria herdade, que reúnem "boas condições", segundo os próprios residentes. As estruturas têm dimensão considerável, com cozinha bem equipada, sala, casa de banho e quarto com beliche. Com mulheres de um lado e homens do outro - exceção feita a um casal -, a limpeza e arrumação é transversal aos alojamentos. A lavandaria é comum, destacando-se por aqui o espírito de partilha.
In «DN»