Foi para a Austrália aos 12 anos, uma menina cheia de sonhos. Para Sydney. Com a mãe, com uma tia e alguns outros familiares.
Foi por aquilo a que na época era a “carta de chamada”, o pai já lá estava, foi ver como era e chamou. Era o habitual numa fase marcadamente de emigração. O “homem da casa” ia à frente, umas vezes já tinha um contacto, outras nem por isso, era mesmo à sorte. Depois, ia chamando a família. Neste caso, o pai já tinha um cunhado lá. Conceição passou, num abrir e fechar de olhos, como no imaginário de uma criança daquela idade, para um lado novo da vida, teve medo de tão novo aquilo era. Para ela, claro. Machico, ali tão perto durante tanto tempo, estava a uma distância de 23 horas de avião. Era muito, mesmo muito.
Primeiro o sonho australiano, depois as dúvidas
Maria Conceição Sousa Alves foi porque os pais foram. Eles, os pais, queriam o melhor para ela, como tantos outros fazem em relação aos seus filhos, à sua família. O sonho australiano tinha objetivos bem definidos, uma vida melhor e uma educação inesgotável para que um dia fosse “alguém”. Fez-se mulher, casou com um britânico, Tim Jones, tem dois filhos, a Isabella de 15 anos, quase 16 porque faz na próxima semana, e o Oliver de 13. Ela, a miúda, é preocupada com os refugiados, diz que os países devem ajudar, sobretudo a Austrália, porque “é grande”. Ele, o miúdo, diz-se apreensivo com o aquecimento global. O pai, é mesmo a situação dos aborígenes, os nativos australianos, que o deixa menos tranquilo. Já foi pior, diz, mas há longo caminho a percorrer. Os aborígenes, 1% da população, massacrados pelos colonizadores, ainda procuram os seus direitos, face à discriminação de que são alvo mesmo hoje. Hoje, perfeitamente integrados na Austrália, Conceição e Times são, em termos profissionais, professores e diretores de escolas secundárias.
Sem farda, outra comida, sentia-se diferente
Recorda 1976, o ano em que partiu à procura do futuro, que na altura nem lhe passava pela cabeça como seria. Chegou, viu e quando ainda pensava devagarinho, como a idade aconselha, o tempo que não dava tempo para nada, arrastou-a do sonho para a escola num ápice. Sem farda, sim porque os outros tinham farda, ela não, porque a mãe não sabia inglês e não sabia onde comprar. Foi uma professora, com a observação que o ensino já lhe facultava, quem levou Conceição ao lugar onde se compram as fardas, comprou e a mãe foi pagar. Foi estranho, mas foi assim. Não nega a “vergonha” que sentiu, “era tudo diferente”, ela era diferente dos outros, vinha de fora, não era fácil. Até para comer, olhava de lado para os outros, que pediam, com vontade à vista, uma espécie de bolo com carne dentro, “parecia bom, eu queria experimentar, mas não sabia como pedir e fui adiando”. Um dia, lá foi, experimentou e foi o fim, não gostou, mas como diz o madeirense, não quis dar “parte de fraca”. Correu para a casa de banho sem que ninguém a visse, ou julgasse que ninguém a via, deitou fora. Foi parecido a um trauma, ainda hoje não consegue comer. Mas muita gente gosta, é típico da Austrália.
Levava chouriço com pão, os outros comiam diferente
“A escola ia das oito e meia da manhã até às três, três e meia da tarde. Ninguém vai a casa comer, a alimentação era diferente. Minha mãe ou o meu pai davam-me fiambre ou chouriço com pão, mas os miúdos lá apareciam com outras coisas e eu ficava com vergonha e não comia”. Foi a parte mais difícil, a parte de estranhar, antes de entranhar o ser madeirense perfeitamente integrado na vida da Austrália, como é hoje. Mas na altura, era o pesadelo, conta que “gostava muito de ir à escola, mas ali não. O meu pai sabia disso, sabia que eu gostava da escola, mas que eu estava a estranhar tudo. Dava-me dinheiro para ir à escola, um pequeno valor. Foi com esse dinheiro que comprei o tal bolo com carne, que queria comer para ser igual aos outros. Ainda hoje quero gostar, mas não consigo. Digo isto aos meus alunos para que eles percebam as diferenças de culturas entre os vários povos”.
Foi só uma fase, depois foi sempre em frente, sem tibiezas, com firmeza do que queria e daquilo que os pais traçaram como objetivo. Num “pulo” estava na Universidade e com notas para escolher onde queria tirar o curso, um curso que já se sabia conduzir ao ensino, porque confessa que sempre quis ser professora. Tinha notas para tirar Direito ou Arquitetura, mas dar aulas estava acima de tudo. Hoje, dá aulas de Artes e Línguas. “Eu e o meu pai chorámos quando abrimos o envelope com as notas que davam entrada na Universidade”.
O percurso foi sempre de subida, tirou o mestrado e depois, já na via de ensino, deu aulas e atingiu o patamar de diretora de escola secundária. Deu formação a professores e foi numa dessas ações que conheceu o marido, também ele diretor de estabelecimento de ensino.
O mundo vê na Austrália como um país de oportunidades
A Madeira foi, desde sempre, uma terra de emigração. O quadro foi praticamente sempre o mesmo, de saída, também com os mesmos motivos, procurar uma vida melhor. Os tempos é que são outros, como também outra é a preparação com que os nossos emigrantes, hoje, apontam para novos destinos, com qualificação diferente, mais adequada, também, às necessidades dos países de acolhimento. Maria da Conceição Alves diz que “as pessoas da idade dos meus pais sentem maior dificuldade. Quem chega na idade adulta sente mais problemas, mas todos quiseram dar formação aos filhos, que hoje já apresentam um bom grau de conhecimento superior”.
O mundo vê a Austrália como o país das oportunidades. Já via, mas agora mais. E mais porque nos tradicionais países de emigração madeirense, especialmente Venezuela e África do Sul, a situação de instabilidade é de tal ordem que as opções viram-se para países onde a segurança é ainda grande. As autoridades australianas travaram as entradas e é por isso que há menos emigrantes novos naquele país, além de se tratar de um país que está a uma distância muito grande da Europa”.
Australianos recebem bem a comunidade
Conceição Alves fala da integração com garantia. Os australianos recebem bem a comunidade portuguesa, conhece melhor a realidade de Sidnei, porque viveu e vive ali, mas na generalidade do país “os portugueses, em geral, e os madeirenses em particular, são bem recebidos. Há festas tradicionais portuguesas, existem festas religiosas, existe um espaço de gastronomia com restaurantes portugueses, padarias e pastelarias”.
Portugal não faz a devida ligação às comunidades
Sobre o ensino do português, fala na existência de algumas escolas que lecionam a disciplina, mas deixa um lamento pelo facto do governo, através das embaixadas e dos consulados, não disponibilizar o ensino do português com maior intervenção, como de resto fazem os italianos, que até pagam viagens a Itália para que a comunidade fique sempre ligada à sua terra de origem. Portugal não faz nada disso. Já procurei CD ou outros meios, mas não encontrei. Tem em italiano, em espanhol, mas português não. Os portugueses não promovem uma ligação articulada da comunidade a Portugal, como fazem outros países. É pena. A única aproximação é através da RTP Internacional”.
Filhos compreendem melhor do que falam
Já quanto a falar em casa, é mais difícil. Os filhos compreendem melhor do que falam, mas sempre que possível procura transmitir-lhes as raízes da sua terra, bem como as raízes da terra do pai. Foi nesse contexto que se insere esta viagem, que passou pelo Reino Unido e Madeira, precisamente os dois locais onde tanto Conceição Alves como Tim Jones nasceram. “É importante que os meus filhos conheçam a terra onde nasci”.
Isabella e Oliver andam na escola, falam pouco português, mas entendem bem o que se fala. Em termos de comunidade educativa, na Austrália, os problemas não são muito diferentes. Temas como bullying e toxicodependências estão, também, na razão direta das preocupações. Existem, todos sabem, e quando é preciso intervir os estabelecimentos de ensino têm mecanismos que, tal como em Portugal, passam pelos pais, primeiro, pela polícia se for caso disso.