Nasceu em Leiria, também viveu em Coimbra, em Boston e agora em Paris. Sempre em busca de uma boa oportunidade, em constante mudança e aprendizagem, que entende serem as características dos tempos atuais.

 

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Ela não vai ficar para trás e está bem situada. Foi eleita pela revista Forbes como um dos sub-30 mais promissores da atualidade, uma distinção que agradece mas salientando que prefere os prémios científicos. Tem casa em Lisboa e escolhe o Jardim da Estrela para a entrevista. Explica como inventou uma cola para reparar defeitos no coração de um bebé, que terá muitas outras utilizações na saúde, de uma forma que até parece fácil. Sorri, com a observação, mas diz que é fruto do trabalho.
Diz que era uma rapariga tímida. Como é que conseguiu superar essa timidez, pois além de tudo é um dos rostos da empresa onde trabalha?

Não era assim tão tímida, mas também não era extrovertida Foi uma questão de trabalho, aprende-se. Conhecer os nossos defeitos é o primeiro passo para os melhorar. Ajudaram as atividades no desporto e mesmo na escola, as boas influências à minha volta, desde os meus professores aos mentores de doutoramento, todos os que puxaram por mim e me ajudaram a crescer.

Como é que lidou com toda esta exposição ao ser considerada pela Forbes um dos 30 jovens mais promissores?

Claro que foi um orgulho muito grande, um reconhecimento do meu trabalho, de tudo o que tinha sido feito, todas as falhas, todo os sucessos [ri].

Está numa lista que inclui os portugueses Vhils e Cristiano Ronaldo. Sente-se o Ronaldo da ciência?

[Ri] Não me sinto o Cristino Ronaldo da ciência. Mas o Ronaldo para mim, além de ser um bom jogador, é um exemplo de trabalho, da dedicação e do esforço para conseguir ir mais longe. O talento é sempre importante mas sem trabalho não se chega muito longe. O talento e o trabalho árduo são essenciais e o Ronaldo é um exemplo disso.

Conheceu-os pessoalmente?

Não, falei pelo telefone com o Vhils mas não com o Ronaldo.

O que significam os prémios?

Para mim, o mais importante é o trabalho que estamos a fazer. Mas claro que o reconhecimento é importante, até para estimular outras pessoas a seguir a carreira científica, verem que vale a pena desenvolver coisas novas e arriscar. Há sempre um risco mas esse risco pode trazer coisas boas. Espero é que esta distinção sirva de motivação. Espero que olhem para mim não pelos prémios mas pelo meu trabalho.

Qual foi o prémio que mais festejou?

As pessoas falam muito da Forbes mas para mim não é o prémio mais importante, o mais importante é o do MIT [MIT Technology Review] porque é do meio académico e foi o primeiro, em 2014. Também o da Time [Next Generation Leaders], talvez por ser coletivo.

Licenciou-se em 2008, doutorou-se em 2013, não foram precisos muitos anos até estar no topo.

Realmente, o trabalho recompensa [ri].

Sempre teve essa ideia?

Sim. E ainda tenho. Uma pessoa tem de ser paciente mas o trabalho recompensa, não só pelo reconhecimento mas também pelas pessoas que fomos conhecendo. Foi o meu trabalho de doutoramento mas a investigação é sempre um trabalho de equipa. É totalmente errado pensar que a pessoa está sozinha no laboratório e, de repente, tem uma ideia brilhante. Além de que estava em Boston onde há uma grande densidade de pessoas a fazer investigação e são muitas as oportunidades.

Licenciou-se em Ciências Farmacêuticas. Foi a primeira opção?

Sim, sempre gostei da área da saúde mas não queria Medicina e essa também foi uma das razões por que quis desenvolver este projeto. Sempre tive um bocadinho de pavor das vacinas, de tirar sangue, era preciso uma pessoa para me agarrar os braços, as pernas, a minha mãe passava muita vergonha. Sempre que entrava num hospital ficava nervosa. Não sei lidar com o sofrimento, faz-me confusão. Se tivesse trabalhado, poderia ultrapassar, mas em Farmácia podia desenvolver soluções para os problemas dos doentes.

Licenciou-se em Coimbra e doutorou-se Boston. Quais as diferenças?

São coisas diferentes. Tirei o curso em Coimbra e estará sempre no meu coração, adorei a envolvente académica, o espírito de entreajuda. Boston foi a parte da investigação, é uma das melhores universidades do mundo, situa-se entre o MIT [Massachusetts Institute of Technology] e Harvard, a poucos quilómetros de distância, o que faz que haja uma grande densidade de investigadores.

Grande concentração de crânios.

Sim e nunca senti falta de bases, a formação que temos em Portugal é de topo. O que é diferente em Boston é a motivação, talvez por se estar lá pouco tempo, as pessoas pensam: "Temos de fazer as coisas acontecer." Acho que não é uma questão de EUA e de Portugal, é uma questão de Boston e do resto do mundo, funciona um pouco como Silicon Valley para a tecnologia, só que Boston é mais focado na saúde, é um cluster da saúde. E o facto de haver as universidades e hospitais de topo cria um ecossistema para novas ideias e desenvolvimentos, que é único.

Os métodos de trabalho são diferentes?

Há sempre coisas a aprender, especialmente na área da saúde. Tudo evolui tão depressa que se não tivermos esse espírito ficamos para trás. Em Boston aprendi como desenvolver um projeto, como criar uma tecnologia. Além das universidades existem várias startups, há todo esse relacionamento e uma pessoa vê como é que se pode gerar valor da investigação. A investigação-base tem de existir mas depois é preciso financiamento e toda a parte de empreendedorismo. É uma cadeia de valor completa.

Cruzou-se com muitos portugueses.

Entrei no programa MIT Portugal em 2009 e estavam lá 10 a 15 portugueses. Havia, e continua a haver, uma massa crítica portuguesa muito forte.

Como é que teve a ideia de criar esta cola?

A ideia deste adesivo surgiu depois de o meu orientador de doutoramento ter sido contactado por um médico do Boston Children"s Hospital para desenvolver uma tecnologia neste espaço. O que fiz foi discutir com ele para perceber qual era o problema e que soluções tinham disponíveis para a partir daí desenvolver a ideia, que é o meu método de trabalho. Não sou médica e, em qualquer projeto que inicie, o primeiro passo é discutir com os médicos, perceber se é um problema grave para os doentes ou não e, depois, desenvolver soluções para o resolver. Há todo um trabalho de equipa, há muita comunicação, muita interação, o que é fundamental para se criar algo relevante.

Mas já existe cola nas cirurgias?

Existe para colar pele, para o exterior, não existe para o interior e que possa ser entregue de uma maneira minimamente invasiva. É uma cola que repara defeitos no interior do corpo e pode ser entregue através de pequenos orifícios, depois pode espalhar-se ou estar numa espécie de patch [remendo], como se fosse um adesivo. É biocompatível (não é tóxica) e biodegradável (é absorvida e substituída pelo tecido do paciente).

Diz que natureza tem muitas respostas, temos é de as observar e desenvolver. Não há nada para inventar?

A inovação é difícil, mas às vezes não usamos o tempo suficiente para tentar perceber o que está à nossa volta. A inovação surge da intercessão de diferentes mundos e é preciso trabalhar toda a parte multidisciplinar, perceber como as coisas funcionam e as diferentes áreas do conhecimento. É aí que surge a inovação. Há coisas para se inventar mas a inovação é um processo contínuo, é como montar um puzzle, umas vezes é mais óbvio outras menos. Pode inventar-se sendo um catalisador das diferentes áreas do conhecimento. Foi esse o meu trabalho, fazer a ligação da áreas médica e química e toda a parte business. A inovação surgiu da intercessão destas três vertentes.

E deu outra dignidade às lesmas porque foi observando este molusco que chegou a essa descoberta.

[Ri] Quando fomos contactados pelo Dr. Pedro del Niro [chefe de cirurgia cardíaca no Boston Children"s Hospital], tentámos perceber que tipo de material sintético podia ser usado. Basicamente, ele queria uma solução para reparar buraquinhos no coração de bebés de uma maneira minimamente invasiva e algo que pudesse crescer com o próprio paciente. Existem dispositivos metálicos que comprimem o tecido e reparam estes defeitos, mas não são biodegradáveis, não crescem com o coração, têm de ser substituídos.

A cola permite que o tecido regenere?

À medida que a cola é absorvida é substituída por tecido ou células do paciente, fica uma espécie de cicatriz.

E quando é que surgem as lesmas?

Para se conseguir algo que adira num ambiente como o coração, com um fluxo bastante turbulento de sangue, o que fizemos foi olhar para alguns animais que conseguem aderir em ambientes molhados. É muito fácil desenvolver adesivos para superfícies secas, mas é muito difícil para superfícies molhadas, como o interior do corpo humano. Olhámos para a natureza, nomeadamente para as lesmas e caracóis, para criaturas que conseguem aderir no molhado e tentámos imitar as propriedades microscópicas das secreções que produzem nesses ambientes.

Que materiais usaram?

O material é sintético, é hidrofóbico (não se mistura com a água), viscoso e fica onde o médico o posicionar.

É caro?

Esse foi o trabalho que estivemos a desenvolver na Gecko, o objetivo é obter um preço compatível com os procedimentos cirúrgicos senão não vale a pena desenvolver este tipo de materiais. Trabalhámos a escala de produção, industrial, o que nos permite ter preços mais baixos e que seja rentável.

Quanto tempo demorou a investigar?

Comecei o projeto em 2009 e quando saí de Boston, em 2012, a prova de conceito estava feita.

Quando se vai para um projeto desses é para resultar ou há sempre um grande grau de imprevisibilidade?

Gosto de ser otimista, sou otimista, mas a investigação tem sempre riscos. É preciso falhar muito para se fazer algo que resulte. Mas o esforço e o trabalho são contínuos, mais para a esquerda ou mais para a direita chegaremos lá. Quando acabamos o projeto, quando publicamos os resultados, é que uma pessoa se apercebe do que se atingiu naquele espaço de tempo e é gratificante, não só para mim como toda a equipa.

Quantos eram?

Quatro. Eu, o meu orientador [Jeff Karp] e dois médicos. Eu era responsável por desenvolver a tecnologia e eles ajudavam-nos a testar nos animais.

Como surgiu a Gecko Biomedical?

Surgiu quando terminava o doutoramento, em 2012. Através do meu orientador, conheci dois investidores franceses a quem apresentámos a ideia. Gostaram muito do conceito e quiseram desenvolver o projeto em França. Surge a partir da tecnologia desenvolvida durante o doutoramento. Atualmente sou diretora de inovação.

Alguém que é pago para ter ideias?

[Ri] Não consigo ter as ideias todas, é o que digo à minha equipa. Basicamente, é trabalhar com os médicos, descobrir novos problemas que podem ser resolvidos com a nossa tecnologia, torná-la mais versátil. Se pensarmos, por exemplo, que um coração e um osso são completamente diferentes percebemos que há todo um trabalho a desenvolver para fazer que resulte em diferentes tecidos. Temos vários projetos, um bocadinho preliminares, basicamente, é expandir a plataforma. A Gecko começa com este material, temos um produto na área vascular, fizemos o ensaio clínico no ano passado, e a minha função é perceber quais são os próximos produtos a desenvolver.

Ainda não dá dinheiro?

É uma startup, temos o capital e para se trazer uma tecnologia para o mercado é preciso tempo. Tem de se provar que o material é seguro e eficaz antes de chegar à parte clínica. O objetivo é que seja aprovada na Europa neste ano.

E quando estará disponível para utilizar em cirurgias?

Para o primeiro produto, na área vascular, estamos à espera de autorização para podermos comercializar, o que deverá acontecer durante este ano.

Quantas pessoas tem a Gecko?

Somos 25, portugueses e franceses.

Tantos portugueses?

Foi por acaso. Estando na Europa, onde há muitos portugueses com boa formação, acaba por ser natural. Somos agnósticos e entrevistamos pessoas de qualquer sítio e idades, o importante é trazer valor à empresa.

O seu envolvimento com a Gecko está datado, depois parte para outra?

Não, não está datado. Adoro o que faço, estou a trabalhar em novas ideias que quero avançar mas, no futuro, poderei estar em outro projeto, não é estanque. Hoje não há aquela coisa de fazer para o resto da vida. Quero continuar com esta dinâmica de fazer coisas novas.

In «Diário de Notícias da Madeira»